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OS MEUS DIAS DE ABRIL  

Opiniao

Votei pela primeira vez no dia 25 de Abril de 1975. Um dia que nunca esquecerei.

Pese embora já ter direito a voto aquando das eleições legislativas de 1973, a existência de uma única lista, a minha revolta contra o governo de então e a certeza de que as eleições não eram livres nem honestas ditaram a minha abstenção. 

Após semanas de trabalho intenso e intensivo – colar cartazes, participar em sessões de esclarecimento e arruadas, distribuir panfletos porta a porta e de análises politicas que se prolongavam pela noite dentro, o DIA amanheceu.

Votar cedo era uma obrigatoriedade.

Diz-se por aí que os fascistas (ou serão os comunistas?) vão aparecer para boicotar o ato eleitoral que não lhes interessa.

Diz se por aí que quem não votar antes das 10 horas, já não terá oportunidade de o fazer tal será a confusão que se criará à volta das mesas.

Escolhi cuidadosamente a roupa que ia usar. Lembro-me que fui de vermelho. A cor que ainda hoje me acompanha, nem que seja num pequeno apontamento, em cada ato eleitoral. 

Foi com mão trémula e o coração prestes a explodir, que recebi o boletim de voto e, embora soubesse bem em quem votar, li atentamente todos os nomes e atentei em todas as siglas dos 14 partidos que se apresentavam a eleições para a Assembleia Constituinte. Estava em jogo quem, durante um ano, ia construir uma nova constituição que serviria de base à vida do povo português e que substituiria a velha Constituição de 1933 que durante anos legitimara um regime político-constitucional de contornos autoritários. 

À tarde, uma ronda pelas várias secções de voto. Tudo calmo. Novos e menos novos esperavam calmamente a sua vez de votar. Falava-se baixinho, alguns riam, mas a maioria parecia emocionada. As filas faziam prever uma grande afluência às urnas.

Os que já tinham votado, conversavam alguns metros mais à frente.

Lembro do Ti Manel do Paço, velho anti salazarista da minha terra, analfabeto, que de madrugada se plantou à porta da junta para ser o primeiro a votar “não fosse vir outra revolução e ficasse tudo na mesma”. “Ai, menina, estava a ver que não conseguia pôr a cruz na chaminezinha. Tinha as mãos suadas e a tremer e os olhos cheios de lágrimas”, disse-me, passados dias, com um sorriso de orelha a orelha.

Lembro a Cândida, mulher viúva com 3 filhos pequenos que me confidenciou nesse dia. “Para a semana já não vou precisar de trabalhar. O senhor da loja disse que se o Socialista ganhar, vão arranjar maneira de dar dinheiro aos pobres como eu para podermos cuidar dos filhos e não os deixar sozinhos na rua o dia inteiro.”

Lembro a senhora Maria. ´Parece que é agora que vou ter a minha casa arranjada. Os soldados andam por aí a ajudar os pobres”.

Lembro a Conceição. “O meu homem já pode regressar de França. Estou farta de estar sozinha. Agora vai haver trabalho para todos e vamos finalmente criar juntos as crianças.”

Tantas esperanças, tantos sonhos. Felizmente muitos deles concretizados.

Mas o tempo arrastou consigo o Ti Manel do Paço, a Cândida, a Maria. Arrastou também muitos dos nossos sonhos e muitas das promessas de um mundo onde a liberdade se consegue com a paz, o pão, habitação, saúde e educação para todos. 

E 50 anos depois, o neto do Ti Manel milita hoje num partido de extrema-direita como revolta pela morte da mulher que não chegou a tempo ao hospital “mais próximo”. Os filhos da Conceição, ambos enfermeiros, trabalham no Reino Unido e por lá irão ficar. E ela continua sozinha. A casa da Maria nunca foi recuperada e hoje é apenas um monte de pedras na aldeia deserta que foi definhando aos poucos.

Só as Cândidas continuam a receber apoios para criar os filhos, embora cada vez mais sujeitas à crítica de que “andamos a pagar para estes malandros não fazerem nada”. 

Sempre soube que Abril era frágil e os inimigos estavam à espreita, mas, ultimamente, ver desmoronar as conquistas de então, pela mão de quem deveria preservar Abril, não tem sido fácil. 

Não chega empunhar cravos, não chega recordar e elogiar. É preciso cumprir promessas.

Maria de Fátima Martins da Costa H. Flores

Professora aposentada, militante do Partido Ecologista Os Verdes, eleita pela CDU na Assembleia de Freguesia de Arcos e Mogofores (Anadia)

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