Scroll Top

OPINIÃO: TEORIA, PRÁTICA, CONGRUÊNCIA E FELICIDADE

Opiniao
Apesar de, tanto a teoria como a prática, serem duas faces da mesma moeda, pois ambas se correlacionam naturalmente, é importante encontrar um equilíbrio. Pois poderá existir muita incongruência entre ambas. Entre a teoria e a prática. Entre aquilo que se pensa e aquilo que se faz. Entre aquilo que se acredita e aquilo que se faz. Entre aquilo que se acredita que se deve fazer e aquilo que efetivamente se faz. Neste sentido, é normal haver mais teoria do que prática. Principalmente se estivermos a falar de uma prática que precise da teoria correspondente para poder ser praticada. Das teorias que se praticam, das teorias que se podem praticar, é normal existir sempre mais teoria do que prática. Por isso é que se costuma dizer: “falar é fácil, difícil é fazer”. Também é costume dizer-se: “pensar é fácil, difícil é pôr em prática”.
Claro que há coisas difíceis de pensar. Nem sempre a teoria é fácil, ou, tão fácil como à primeira vista se poderá pensar. Basta imaginar a dificuldade que a matemática, só no enquadramento teórico, poderá realizar. No entanto, quando falamos em filosofia aplicada, é normal muitos conceitos serem mais fáceis de assimilar quando apenas teóricos, do que quando se pensa em praticá-los. Principalmente se eles implicarem a necessidade de colocarmos em causa todo o nosso sistema de crenças, e consequentemente, a necessidade de mudarmos as nossas vidas. Além da possibilidade de termos de colocar em causa crenças e hábitos diante os quais poderemos ter muito apego. Mesmo que nos façam muito mal. Mudar não é fácil. É talvez das coisas mais difíceis que poderá existir na vida. Principalmente se tivermos apegos. Todavia, em nome da felicidade, mostra-se muitas vezes necessário.
Se eu descobrir teoricamente, por exemplo, que as emoções precisam de ser processadas, que não devo fingir que não sinto tristeza quando ela aparece, processando-a sempre que necessário, para que não desenvolva problemas psicossomáticos por bloquear aquilo que sinto, é normal que na prática seja mais difícil. É normal existir um grande hiato entre a teoria e a prática. Principalmente se essa prática implicar todo um processo que demora o seu tempo. Quem tem as suas fases. Que não se faz e pronto, já está feito, e nunca mais. Neste caso, as emoções têm de ir sendo processadas ao longo da vida. Portanto, neste enquadramento, é normal existir muito mais teoria do que prática. O que importa é que se vá tentando, o que importa é que se vá praticando. Para que a distância entre a teoria e a prática, não se torne gigantesca. O que importa é que se vá procurando pôr em prática aquilo que se acredita que se deve fazer. Além da necessidade de se colocar em causa aquilo que se acredita.
Há pessoas que acreditam que meditar faz muito bem. Acreditam que meditar é absolutamente fundamental. Em vários sentidos terapêuticos. E até comunicam isso a muitas pessoas com alguma regularidade. No entanto, nunca meditam, no entanto, nem sequer tentam. Isto poderá significar uma incongruência entre a teoria e a prática. O que não valida a necessidade de nos andarmos a julgar uns aos outros.
O que importa mesmo é estarmos atentos às nossas práticas, tal como devemos estar atentos às nossas crenças, à nossa “parte teórica”. É muito comum, é muito fácil, termos muita bagagem em termos teóricos, e em termos de prática estarmos a falhar redondamente. Não basta sabermos teoricamente aquilo que promove a felicidade. É essencial pôrmos em prática. Caso contrário nunca poderemos transitar de um estado de infelicidade para um estado de felicidade. É importante a teoria? Claro que é. Tal como também é crucial a prática. É importante irmos entrando em contacto com novos conhecimentos e novas experiências, para nos possibilitar a transformação do próprio sistema de crenças. Mas no sentido da aplicação. Se não for para aplicar, pouco nos servirá uma teoria felicitaria. Não basta apenas ter conhecimentos felicitários. É preciso a prática felicitária. Claro que neste âmbito, realiza-se sempre da teoria para a prática.
Precisamos de uma consciência atenta às nossas crenças, à nossa “parte teórica”, o que nos deverá levar à aquisição de novos conhecimentos, de sabedoria de vida, mas também precisamos de uma consciência atenta às nossas práticas, pois poderemos estar a fazer tudo ao contrário, relativamente àquilo que acreditamos que devemos fazer, em termos felicitários. Por exemplo, se acreditamos que precisamos de meditar, temos mesmo de meditar. Acreditar apenas na necessidade não poderá fazer grandes transformações, ou produzir grandes efeitos. Apesar de ser condição de possibilidade da prática.
Apesar de ser normal existir mais teoria do que prática, devemos estar atentos às incongruências que poderão existir. Pois é a nossa felicidade que está em causa. A nossa e a das pessoas que nos rodeiam. Há quem acredite que se deve respeitar o próximo. Há quem exija respeito do próximo. Mas não costuma respeitá-lo. Por estar mais centrado no próximo do que em si. Por estar mais centrado em exigir respeito do que em procurar respeitar. Isto significa que é mais fácil estar centrado nos outros do que desenvolver a autoconsciência. É mais fácil e confortável a síndrome da vitimização do que assumir a responsabilidade pelas consequências das próprias escolhas. Não se consegue uma harmonização entre aquilo que se acredita e aquilo que se faz sem o mínimo de autoconsciência. Tenhamos isso em atenção. Conhece-te a ti mesmo e poderás conhecer aquilo que praticas. 
 
Capítulo da obra “Reflexões filosóficas sobre a felicidade Todos os Volumes” (Chiado Books, 2021). Autor Filipe Calhau.

Filipe Calhau é natural de São João da Madeira e residente com raízes familiares em Vagos. É licenciado em Filosofia pela Universidade de Coimbra. É consultor filosófico. É ativista filosófico e para uma pedagogia da felicidade. Membro da APAEF – Associação Portuguesa de Aconselhamento Ético e Filosófico, onde dá formação certificada em Individualogia. Foi conferencista na 5ª edição do Seminário de Estudos sobre a Felicidade, com o tema: “Ética a Nicómaco”, realizado na Universidade Católica Portuguesa a 29 de maio de 2019. Investigador integrado no projeto “Perspetivas sobre a felicidade”, Contributos para Portugal no WHR (ONU). Tem um canal de filosofia no YouTube e várias obras publicadas na área (18 obras ao todo, publicadas em Portugal e no Brasil).

Posts relacionados