Vivemos tempos muito estranhos. Não que alguma vez o não tenham sido, mas 2022 trouxe o paradoxo das mudanças drásticas para que tudo ficasse na mesma.
Esperei grandes mudanças. Nos indivíduos, nas sociedades, nas relações internacionais… acredito que alguns terão mudado hábitos quotidianos, mas as mudanças que esperava sucumbiram ao peso da humanidade que há em nós, animais. Somos animais de hábitos, e teremos talvez uma memória genética que nos transforma em algo parecido com pescadinhas de rabo na boca, mais século menos século e repetimos a história. A História.
O que mais me incomoda quando leio o que se vai escrevendo no Facebook e nos jornais é verificar que a maioria que se propõe mudar comportamentos sociais, entre vizinhos ou nações, inicia o seu trajeto recorrendo a velhos hábitos sociais, os tais que nos relevam aos outros animais e nos submergem de humanidade: a manipulação, a acusação, o vilipêndio, a ofensa, a injúria… o espetáculo dos horrores, e quanto pior, melhor. Estou salvaguardado de outras redes, portanto, e confiando no que delas leio e ouço, esta minha perspetiva sobre muitos dos entusiastas candidatos-a-precursores das mudanças sociais pecará por defeito. Se não concordam, ouçam os debates na AR, atentem nos manifestantes, leiam os artigos de opinião – e refutem, se conseguirem.
Dizem os arautos do autoconhecimento, do empoderamento (o quê?), do crescimento pessoal, que a viagem depende inteiramente de nós. Até concordo, mas aquilo do autoconhecimento é parecido com o conhecimento – precisa de ferramentas, precisa de técnica e, quiçá, precisa de técnicos. Quanto mais não seja, para cada um perceber o que descobre na viagem, que bois olhando palácios seremos quase todos perante quase tudo se sem treino. E, com isto, viajo entre temas; mas deem-me a mão nestas voltas, prometo tentar não vos perder.
A mudança interior parece fazer-se em sentido contrário à mudança social: se esta se edifica sobre acusações e injúrias, aquela avança com pensamento positivo, gratidão, aceitação e superação… Por vezes fico enjoado com tanto discurso positivo, confesso. Não exatamente pelo discurso, pois que, havendo alguns escabrosos de amadorismo e senso-comum, outros há belos e tecnicamente consistentes; fico enjoado pelo contraste, de um lado a acusação e do outro a gratidão, de um lado a manipulação do outro a superação, sentindo os mundos paralelos e nunca intersectados, ou sombra ou sol… e a Lua impávida, estação após estação olhando estes animaizinhos irrequietos.
Tenho como premissa que todas estas aversões e atracões giram em torno da comunicação, da capacidade e do treino que cada um tem nesta necessidade e da qual nem a morte nos liberta, que adorar os mortos e adornar-lhes o último leito são artes que se confundem no início dos tempos. Desta nossa espécie, pelo menos, tão pródiga em lamentar mortos que vivendo despreza.
Não me é recente o apelo ao bom uso da língua portuguesa. À correção da gramática, sim, mas também à mensagem, porque a língua portuguesa apenas valerá se usada para cumprir o objetivo da sua criação, para cumprir o objetivo de qualquer língua: comunicar.
“Não é legítimo português quem não comunica em português” poderia ser uma excelente frase. Imodestamente aponto-vos a métrica, o recurso das palavras homónimas, o apelo patriota que ilumina cada letra… sim, poderia ser uma excelente frase – se não levantasse várias questões, desde esta mania que temos de pensar a Língua Portuguesa sem pensar a Língua Gestual Portuguesa, uma das três línguas oficiais fundamental para cerca de 120.000 cidadãos, até aquela de entender que a arte ou o saber da Língua Portuguesa pesa apenas no emissor, o recetor tão isento de obrigações que o primeiro terá de nivelar por baixo se quiser ser compreendido. Isto e muito mais, pontapeando pelo meio as defesas de não atribuição de nacionalidade a quem não fala português, como se todos tivéssemos a mesma capacidade, a mesma personalidade, o mesmo acesso – e por todos leia-se nacionais e aspirantes.
O contexto da comunicação é fundamental, por contexto da comunicação referindo-me às circunstâncias em que ocorre: uma conversa de café não nos exige a mesma atenção que uma preleção num palanque ou uma conversa entre cliente e fornecedor. Não exige, não merece, mas deveria merecer. Adaptar o léxico, sim, mas não ao ponto de nos descaracterizarmos, não ao ponto de descermos abaixo do que consideramos mínimo. E pensar o que dizemos, o como o dizemos – porque nos será censurável cometer um erro de conhecimento ou de raciocínio perante desconhecidos e apetecível ofender a inteligência dos nossos amigos? Porque estes nos perdoam? E se resolvermos deixar de nos perdoarmos, se decidirmos ser mais exigentes com os que nos são próximos?
A pressão dos pares é tramada, bem sei. Mas aquilo da gratidão, aceitação e superação terá mais horizonte do que a viagem interior, suponho. Porque tal viagem, nunca completa, só valerá se depois seguirmos rumos fora de nós e nos voltarmos a viajar, que para se nos terminar nas pontas dos dedos basta coçar a própria pele. Do cocuruto, como o macaquinho pensador.
Talvez seja esta falta de atenção na comunicação com os que nos são próximos que nos leva a desejar sangue na comunicação com os outros? A crítica destrutiva, a manipulação, a injúria… quantos lemos e ouvimos apresentando soluções? Quantos colocam o dedo na ferida para estancar o sangue ou apontar o curativo? Poucos, muito poucos. Porque quem os outros ouve não exige mais, antes lhes alimenta a vileza. E depois deste desconfinamento, o que encontro no fim do arco-íris continua a ser o pote que pariu a maledicência. Continua a ser o escrever sem confirmar, o ecoar sem pensar, o refletir como se espelhos e não animais pensantes que somos. Ou deveríamos ser. Porque política, trabalho ou lazer, redes sociais, televisão, isto está mesmo tudo ligado. Pela comunicação. E não creio que se mudem indivíduos ou sociedades sem mudarmos a forma como comunicamos.
Carlos Monteiro. Dirigente do GEOTA, ex-deputado municipal. Reside na Praia de Mira.