Neste momento dito pós pandemia, que ainda não foi ultrapassada, em plena guerra na Europa, observa-se uma procura de mão-de-obra em determinados setores fulcrais da economia, em especial nas atividades industriais e agrícolas, enquanto há pessoas sem ocupação remunerada e vagas de trabalho em aberto a não serem preenchidas.
Há aqui paradoxos e incongruências na nova organização social.
Em 1930, o economista John Keynes previu que no final do século XX, início do século XXI, a semana de trabalho industrial seria de 15 horas semanais. A tecnologia iria libertar as pessoas de tarefas repetitivas, sem sentido, e que ele considerava como inúteis.
Afinal John Keynes não tinha todas as equações presentes no seu sistema matricial. Afinal a tal semana de trabalho industrial não é a prevista pelo economista, ainda hoje tão referido e citado. Hoje,11 de novembro de 2022, dia em que escrevo estas linhas, leio na revista Visão que Elon Musk, novo dono do Twittter, também dono da SpaceX e da Tesla que o trabalho remoto deixa de ser permitido, e que espera que os funcionários estejam no escritório pelo menos 40 horas por semana.
Sabemos que hoje em dia temos pessoas nas nossas organizações a executar tarefas sem sentido, atividades a roçar a inutilidade e que as absorvem durante muito tempo das suas vidas.
Hoje podemos constatar, também, que os trabalhos socialmente mais úteis são os mais mal pagos. Há exceções só para confirmar a regra, e mesmo aqueles que se executam pró bono não são vistos com bons olhos pelas organizações. Temos pessoas a executar tarefas sem sentido, bem remuneradas, a fingir que fazem algo útil.
Do dicionário etimológico, a palavra trabalho vem do latim “tripalium”, nome de um instrumento de tortura constituído por três estacas de madeira.
Assim sendo, trabalhar significava ser torturado, e quem trabalhava eram as pessoas sem posses ou meios de subsistência.
Um exemplo do castigo, tortura, pelo trabalho com extensão, às atividades físicas produtivas realizadas pelos trabalhadores em geral, nomeadamente camponeses, encontramo-lo em Génesis 3:19. Do suor do teu rosto comerás o teu pão, até que tornes à terra, porque dela foste tomado; porquanto és pó, e ao pó tornarás.
Já do francês travailler, que significa “sentir dor” ou “sofrer”, e com o passar do tempo, o sentido da palavra passou a significar “fazer uma atividade exaustiva” ou “fazer uma atividade difícil, dura”. Do latim labor os intelectuais não se referiam à sua atividade como um trabalho, mas sim como um lavor do espírito.
Hoje em dia o trabalho, tal como o conhecemos, ainda tem muito do significado próximo do castigo bíblico do versículo escrito pelos sacerdotes judaísta do templo de Jerusalém de Ciro II, o messias persa, como forma de dominar os povos agricultores judeus ao monoteísmo.
No entanto hoje em dia há uma ideologia partilhada por corrente politico-ideológicas aparentemente opostas: o trabalho, seja ele qual for, é todo bom.
Os opostos estão de acordo neste ponto.
Eu não sei qual a equação ou equações faltaram ao sistema matricial de John Keynes para que ele tivesse concluído em 1930, que no final do século XX, início do século XXI, a semana de trabalho industrial seria de 15 horas semanais, e falhasse.
Só sei que o pensamento económico dominante que se lhe seguiu, e hoje a cavalgar a globalização, recebeu galardões prémio Nobel nas pessoas de George Stigler e Milton Friedman, onde o Keynesianismo foi rejeitado em favor do monetarismo.
Agora o Sistema compra boato e vende fato. Isto tudo sempre na mira do crescimento pelo crescimento, numa doutrinação constante, onde qualquer político seja da esquerda, direita ou centro, e agora com os comentadores chamados também de “opinion makers” e “opinion leaders”, debitam essa palavra a torto e a direito nas suas verborreias discursivas.
Ciclicamente a maré baixa, e os que nadam nus ficam expostos, nas suas vergonhas, nas areias do mar da engenharia financeira.
É assim que o famoso e poderoso Mercado cria cada vez mais ocupações inúteis, e paga bem a esses trabalhadores, como forma de garantir que as atividades mais necessárias continuem mal remuneradas.
Em 1930 era possível pensar que no século XXI a tecnologia iria libertar as pessoas de tarefas repetitivas, sem sentido, e que se poderiam considerar como inúteis. No entanto a voz corrente de hoje em dia ainda é o contrário. Com a robotização e a Inteligência Artificial assustam-se as pessoas que já lhes roubam o trabalho, o tal instrumento feito de três paus, o tripalium.
O medo está entre os que vendem o seu tempo ao Sistema, e se a quantidade de medo específico baixa, há que o manter a um certo nível.
As notícias das TVs e dos meios de comunicação, repassadas pelas redes sociais, rodam sempre à volta da economia, têm como objetivo colocar o medo do cidadão num determinado nível de ansiedade.
Assim tudo andará à volta daquele receio constante de perder qualquer pouca coisa que se julga ter, e fica-se mais recetivo a aceitar tudo isto como normal.
Thomas More afirma: “A pobreza do povo é a defesa da monarquia… A indigência e a miséria eliminam toda coragem, embrutecem as almas, acomodam-nas ao sofrimento e à escravidão e as oprimem a ponto de tirar-lhes toda a energia e sucumbir ao jugo”.
Tenham medo, que já há literatura do anúncio do possível fim do Humanismo, já para o breve amanhã.
Vamos trabalhar?
Ninguém quer trabalhar!
Recordo os meus tempos de adolescente ouvir na Rádio a necessidade urgente de todos trabalharem para vencer a “Batalha da Produção”. Era o tempo do chamado PREC, Processo Revolucionário em Curso, ano 1975.
Hoje ouço defensores de que é preciso mais trabalho para ajudar as pessoas que já trabalham duro, que têm dificuldades em cumprirem com os compromissos já assumidos. E quem não queira trabalhar duro, trabalhar mais modernamente, não terá direito à ajuda?
Há quem afirme que é preciso reduzir certos impostos para criar emprego, mas não diz que tipo de emprego ou ocupação cria.
Enquanto isto vai acontecendo, o sistema de ensino atual afirma prepara as novas gerações para o mercado do trabalho.
Até hoje, quer uns quer outros parecem servir o mesmo propósito de criar trabalho, como escreveu Paul Lafargue no século XIX “numa era em que a religião do trabalho exige dos seus fiéis crescentes sacrifícios laborais, em troca de um lugar na santa comunidade de cidadãos honestos”, mesmo que seja trabalho inútil.
Quando do trabalho só se retira o possível retorno para colmatar as necessidades básicas, e outras que não descrimino, mas assumidas contratualmente, podemos concluir que as pessoas passam muito tempo das suas vidas em inutilidades.
Nesta era de oferta de prazer a esmo, atingido pela via do consumo e uso rápido, nesta religião cuja penitência é o trabalho, nem preparados estamos, sequer, para imaginar tempo de lazer puro e duro, isto é, sem ser tempo de consumo.
Tal como o espaço, a atmosfera, em que vivemos envolvidos tem horror ao vazio, assim a sociedade que nos envolve tem horror ao ócio e, pior ainda, à preguiça.
Bibliografia:
– Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda, de John Maynard Keynes.
– Liberdade para Escolher, de Friedman, Milton e Rose Friedman.
– Bullshit Jobs, de David Graeber.
– O Decrescimento, Entropia – Ecologia – Economia, de Nicholas Georgescu-Roegen.
– A Ascensão do Dinheiro. Uma história financeira do mundo, de Niall Ferguson.
– Homo Deus: História Breve do Amanhã de Yuval Noah Harari.
– O Direito à Preguiça de Paul Lafargue.
Manuel Ribeiro
2023-12-05
Manuel Ribeiro. Engenheiro, músico.