No dia 25 de Abri de 1974 vivia em Coimbra.
Alheia ao que se passara na noite anterior, levantei-me, como de costume, bem cedo. Levei as minhas filhas ao infantário e conduzi o meu Morris em segunda mão, comprado com o dinheiro que o meu avô me emprestara e que religiosamente ia pagando em prestações, até à escola onde nesse ano dava aulas, em Anadia.
O carro não tinha rádio, eu nunca tinha ouvido, sequer, falar em telemóveis, por isso só quando entrei no pátio da escola percebi, pelo aglomerado de alunos, que algo tinha acontecido. Uma revolução que ainda continuava nas ruas de Lisboa.
Sem saber bem o que fazer, sem saber bem o tipo de revolução nem as suas consequências para a libertação ou o endurecimento de um regime que já me oprimia há alguns anos, regressei a casa. Apanhei as meninas no infantário, fui coloca-las em segurança em casa dos meus pais e só então vim para a rua.
Em casa do Mortágua, sentados em redor do rádio, ouvíamos os comunicados e as notícias e imaginávamos o nosso futuro. Vai continuar a guerra nas colónias? Os nossos amigos vão continuar a fugir para França? As prisões políticas vão ficar ainda mais cheias? Vamos finalmente poder sentir a liberdade de alinhar pelos outros países europeus donde nos vinham notícias de uma nova era?
Já era noite quando finalmente percebemos o que se estava a passar quando a televisão nos trouxe aquelas imagens que nunca mais esquecerei.
Os tanques na rua, as pessoas a aplaudir, a fachada da casa na António Maria Cardoso, o exterior do quartel do Carmo e finalmente a Junta de Salvação Nacional e o discurso de António de Spínola que começava assim “Em obediência ao mandato que acaba de lhes ser confiado pelas Forças Armadas, após o triunfo do Movimento em boa hora levado a cabo pela sobrevivência nacional e pelo bem-estar do Povo Português …”
Respirámos de alívio. Algo novo estava a começar naquele dia e ainda bem que estávamos ali para o poder viver.
Lembro as tardes de sábado que se seguiram em que, no Tropical, depois de avidamente termos lido todos os programas dos partidos políticos que emergiam, e enquanto os nossos filhos brincavam na terra da rotunda da Praça da República, discutíamos até à exaustão os prós e contras de cada partido e o que nos aproximava ou afastava das propostas de cada um. Dizer, “não sejas fascista” ou “vai mas é trabalhar para a URSS” não eram insultos, mas frases com que amigavelmente moderávamos a intensidade dos nossos argumentos. Éramos amigos de verdade e tínhamos um sonho comum.
Cada um, jovem licenciado, jovem politico, seguiu o seu caminho e fez as suas escolhas. Uns por opção ideológica, outros por opção de vida, já que a jovem democracia precisava de nós todos e todos queríamos ajudar a construir o mundo novo com que sonhávamos desde 1969.
Como tudo na vida, nem todos os nossos sonhos se concretizaram. A primeira exaltação foi murchando, as conquistas iniciais foram esmorecendo, as promessas de Abril foram ficando esquecidas. Se havia forças que empurravam o país para a frente, outras havia que o puxavam para trás.
Mas hoje, 47 anos depois, ainda me emociono neste dia e ainda agradeço a todos aqueles que permitiram que hoje eu ainda o viva em Liberdade.
Maria de Fátima Flores
Professora aposentada, militante do Partido Ecologista Os Verdes, eleita pela CDU na Assembleia de Freguesia de Arcos e Mogofores (Anadia)