- Declaração
Nenhuma leitura figurada do passado o altera, e que só uma pessoa alienada e ignorante vive em função da sua crença.
Mais acrescento que a realidade de cada momento é a circunstância provisória dos opostos necessários, e que tudo o que eu aqui escrevo ou digo, é feito por uma boa razão: é o começar de novo.
Há muita coisa que eu não sei, mas gostaria de saber.
Quero deixar claro que esta apresentação é o mais fiel possível à minha memória, onde me esforcei, quanto pude, a eliminar retroprojeções ou revisionismos temporais.
- 1973, Setembro, 14 anos, quase a completar 15 no mês seguinte.
Matriculado na Escola Industrial e Comercial da Figueira da Foz, no 1º ano do Curso Complementar de Mecanotecnia, tendo completado o Curso Geral de Mecânica na Escola Industrial de Cantanhede.
Saí do Escoural da Tocha, aldeia perdida entre pinhais, no fim do mundo, sem estradas onde pudesse transitar com facilidade um carro de praça, sem luz elétrica, água canalizada, claro que sem televisão, mas com um rádio a pilhas de marca Siera, e rumei à cidade da Figueira da Foz das ruas pavimentadas, das torneiras com água, dos automóveis, dos carros de cavalos a transportar mercadorias chegadas à estação do comboio, da luz a rodos e do cheiro a maresia que emanava as docas do porto das traineiras e dos barcos da pesca, em frente das praças Velha e Fernandes Thomaz.
O meu pequeno quarto era na Rua S. João de Deus, no Sobe-e-desce, em frente ao Hospital Velho, o hospital da Gala aguardava inauguração, entre dois quartéis militares: O C.I.C.A. 2, ao lado da Escola Industrial, onde se formavam todos os militares condutores auto para a guerra do Ultramar, e o Regimento de Artilharia, hoje Quartel da GNR.
No Sobe-e-desce funcionava um café que tinha só empregadas de servir à mesa. O outro, mais famoso com empregadas a servir os clientes, era na rua da República, a famosa Vimar. Chamo a atenção que a prostituição não existia, pois o seu exercício tinha sido proibido pelo decreto-lei Nº 44579, que entrou em vigor a 1 de janeiro de 1963.
Antes de rumar à Figueira da Foz, as músicas que eu ouvia eram as do rádio a pilhas: as dos festivais da canção, e os muitos fados debitados, tais como os do António Mourão e Aida de Castro, que me recorde neste momento, e outros.
- No verão do ido de 1973,
no Escoural, comecei a ouvir umas músicas novas que passavam na rádio, umas em português e outras em francês. Destas últimas pouco ou nada entendia das palavras, mas gostava muito da melodia: Jacques Brel e Georges Brassens. Este último toca viola como eu imaginava e queria vir a tocar um dia. Também em Português um tal José Mário Branco cantava um soneto de Camões Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades e Sérgio Godinho com a cantiga É Entrar Senhorias Para Ver o que Cá se Passa.
Nesse mesmo verão, li os livros da coleção RTP, Jubiabá de Jorge Amado e o Suave Milagre e Outras Páginas de Eça de Queirós, comprados na Hortícola de Cantanhede.
- Já na Figueira da Foz,
fins de Setembro, início de Outubro, via o telejornal no aparelho de televisão com um napperon em cima.
Notícias de um Golpe de Estado no Chile com imagens de um general de bigode fino de nome Pinochet.
A primeira ministra israelita Golda Meir e um senhor americano de testa longa, chamado Henry Kissinger da guerra do Yom Kipur. Na RTP única, os israelitas eram os maiores, os bons e os outros que eu nem sabia quem eram, eram os índios maus dos livros de cowboys.
Das notícias nacionais decorria uma campanha eleitoral para a Assembleia Nacional. O slogan era Evolução na Continuidade com os salões das casas do Povo cheias de homens a baterem muitas palmas a discursos incompreensíveis para mim.
As eleições de 23 de Outubro de 1973 decorreram com o resultado previsto.
Exemplo: no Distrito de Coimbra a lista A teve 86 380 votos dos 86 384 votantes e a lista B recebeu zero votos. Uma vitória por 99,99%.
Do Ultramar (Angola, Moçambique e Guiné) víamos as reportagens onde os soldados, um a um, enviavam mensagens de Feliz Natal e um Ano Novo cheio de prosperidades e algumas vezes mensagens de Feliz Natal e um Ano Novo cheio de propriedades.
Na frente da Escola Industrial existia um estabelecimento comercial que tinha uma Jukebox que debitava as músicas do Festival da Canção, José Cid e Quarteto 1111.
Os rapazes entravam na Escola por um portão e as meninas por outro. Os recreios eram separados.
Na espera da paragem da camioneta da carreira para as Alhadas, Maiorca e Montemor, que se situava na Praça Velha, existia uma loja de eletrodomésticos que vendia discos. Na montra um aquecedor elétrico com uma imagem de um toro a arder que imitava labaredas quando ligado. Uma capa do disco do Good By Yellow Brick Road, com Helton John de óculos coloridos e sapatos de tacão alto como a querer iniciar o caminho dos tijolos amarelos desenhado numa parede. As miúdas adoravam a música. O dono da loja colocava o disco a tocar até à exaustão. Outras vezes tocava Cat Stevens, Bob Dilon e o Angie dos Roling Stones.
Não entendíamos as letras das canções, mas trocávamos olhares.
No início da Primavera soubemos no próprio dia, 16 de Março, do Levantamento das Caldas da Rainha.
A visita da Brigada do Reumático a Marcelo Caetano, presidente do Conselho, e a sua Conversa em Família na RTP, eram comentadas entre nós e com alguns professores.
- 25 de Abril de 1974, quinta-feira,
a aula de Matemática tinha começado às 08:00 como habitual. Da chamada só faltava o Vitor Oliveira.
Estávamos a estudar limites de funções, quando o Vitor entrou de rompante na sala com um rádio transístor ligado, aos gritos: professora, professora, é um golpe de estado.
À minha mente vieram as notícias do tal Pinochet do Chile. A turma era constituída por rapazes, já perto dos 20 anos com a espada da guerra sobre a cabeça, e o colega João Belo já tinha de lá vindo. Tinha 27 anos e não falava sobre o assunto.
Ficamos na sala a aguardar, quase todos a ouvir o rádio transístor, os comunicados das Forças Armadas. No final da manhã, o Diretor da Escola, o professor Coelho, entrou na sala e disse que as aulas estavam suspensas, que voltássemos amanhã.
Descemos a rua do posto da PSP, em direção à Praça Velha. O Borges, que estava à espera de ser chamado para a Tropa, começou a cantar a Grândola Vila Morena.
Foi a primeira vez que ouvi a cantiga que me ficou no ouvido.
Escoural, 05 de abril de 2024
Manuel Ribeiro. Músico, Engenheiro